- Vou pois!
E se um cavalheiro vos convidasse a ir aos Amores? Alguém tinha coragem de recusar?
Ora eu, não tive! Aceitei de imediato e lá fomos os dois. Comecei por abrir a porta do lado do pendura para entrar no latão do cavalheiro (que se fosse mesmo mesmo mesmo cavalheiro ter-me-ia aberto ele), e...
- Ops! Eu deveria vir de chinelinho de quarto, não?!?! - o tapete brilhava de limpeza de tal modo que até tive medo que um simples grão de areia da calçada pespegado à sola do meu sapatinho de cinderela se enfiasse naquelas nesgas imaculadas.
- Uh! 'Tás parva? - ele a disfarçar a despreocupação.
- Ok! Fica tranquilo que eu não pouso aqui os pés... vão no ar e assim aproveito para fazer uns abdominais! - eu a mostrar cuidado e tentar passar a imagem de grande desportista.
- Opah! 'Tás memo parva, hoje! - o cavalheiro a esforçar-se por ser simpático.
Seguimos o caminho que nos levava aos Amores. Virar aqui, virar ali, seguir por acolá.
- Olh'á linha do combóio! Pára!
- Não páro nada, tem cancelas e estão abertas!
- Mas pára-se sempre e olha-se para os dois lados!
- Ai que tu 'tás impossívelmente parva hoje!
Muita conversa pelo caminho até chegar ao destino, Os Amores, e na volta até à cidade.
- Viste? Viste aquele carro que se cruzou connosco?
- Eu não!
- É igual ao do fulano tal, só que o dele é preto!
Mais blá blá blá atropelando conversas e deixando outras a meio, e...
- Viste? Viste os faróis daquele? E os espelhos laterais?
- Eu não! Não vi nada!
Blá blá blá e conversas que não chegam ao fim com tanta interrupção, e...
- Viste? Viste aquele BM branco? E a gaja que ia a conduzir que mal se via?!
- Ah! Era telecomandado! - eu a fazer de conta que tinha visto.
- Ah! Afinal vês tudo como eu! - o cavalheiro todo convencido.
Mais blá blá blá e conversas sem princípio, meio, nem fim, e...
- Opah! Vê! Vê aquela carrinha que vai cruzar connosco! É feia todos os dias!
- Qual carrinha? - eu que não tinha visto nada.
- Então não viste? Passou mesmo agora por nós...
Ainda olhei pelo retrovisor, ainda me virei para trás, ainda me esforcei para ver a dita carrinha, quase fiquei com um torcicolo e não consegui ver a p*ta da carrinha. A inconveniência da curva e contracurva não me permitiu alcançá-la e eu... fiquei muito chateada. (cof cof cof)
Chegámos aos Amores. O cavalheiro tratou do assunto que o lá levara. Eu acompanhei. Fizémos o caminho de volta à cidade e, os carros, os modelos, os condutores, os espelhos, as jantes, as antenas, os faróis, as escovas limpa pára-brisas, os combustivéis, os cavalos, o óleo, os capots, os tectos de abrir mais os panorâmicos e mais os normais, as centralinas, os pneus, os estofos, os liquídos de refrigeração, os sensores, as caixas de velocidades, os travões, os chassis, os cruise control, as suspensões, as pastilhas, os tapetes... ai os tapetes é que me tiram do sério... ai se o cavalheiro entrasse na minha latinha... ai que os tapetes estão um nojo... ai com a chuva dos últimos dias e mais o entra e sai e mais a falta de vontade de os sacudir...ai os tapetes... qual sacudir?... ai que aquilo tem que ser mas é lavado, bem esfregado e envernizado e mais qualquer coisa terminado em "ado"... ai que vergonha... ai que tenho que lavar a minha latinha... ai que tenho que lhe fazer uma higienização de cima a baixo... ai que se tenho que dar boleia a alguém é uma vergonha... ai os tapetes... ai que nojo... ai que nem consigo contar as pedras quanto mais os grãos de areia enfiados nas nesgas dos tapetes da minha latinha... ai que vergonha a minha...
- Viste? Viste? Viste aquela carapaça com rodas? E anda, pah!
- Não, não vi!
- Então não viste? E a fumarada do escape? Aquele é que não circula nem nos subúrbios de Lisboa! Não me digas que nã viste?
- Ai digo, digo! Não vi, não!
- Mas o que é que tu vês, melher?!
- Olha, vejo os campos, as casas, os jardins, as folhas caídas na beira da estrada, as chaminés a fumegar... E vi, um gato naquela janela, um cão preso à corrente naquele quintal, as laranjeiras carregadas de laranjas, e naquele terreno um lindo couval, uns canteiros de nabiça que dá gosto, troncos de árvores mortas alinhados e amontoados com destino marcado, uma senhora idosa que caminhava pela beira errada da estrada, e vi as nuvens e uns rasgos de céu azul e também vi o sol, vi tudo e não vi nada.
- Olha! Olha! Vê!
- Vejo o quê?
- A matrícula daquele...
- Ai o tapetes!
- O que foi? Queres parar com a cena dos tapetes...
- Ao deslumbrar-me com a paisagem esqueci-me e relaxei os pés nos tapetes, e...
Não me deixou dizer mais nada!
E agora prezados leitores, vós já tendes ido aos Amores? Vós sabeis o caminho para os Amores? Vós estais curiosos em saber onde ficam os Amores?
Os Amores, como eu e o cavalheiro lhe chamamos, é uma freguesia do concelho de Leiria. O nome dela é Amor e reza a história que associado a este baptismo está uma lenda do tempo do rei D. Dinis. Podem ler
tudo aqui.
- Ai os tapetes!